Em 2024, a equipe do Estúdio Sarasá reencontrou a comunidade japonesa de Registro, dando continuidade a uma relação iniciada em 2012, quando dos levantamentos e diagnóstico dos bens culturais japoneses no Vale do Ribeira para o tombamento pelo IPHAN. Dentre as edificações em processo de preservação, os trabalhos realizados contemplaram a Residência Hokugawa, a Residência Gozo Okiyama, a Residência Suzu Okiyama, a Fábrica de Chá Shimizu e a Igreja Anglicana Episcopal de Todos os Santos de Manga Larga.
As edificações eram e são mais que patrimônios, representam os saberes e fazeres trazidos pelos imigrantes japoneses ao território brasileiro. A história remonta a 1868, com o início da Era Meiji no Japão, que impulsionou a abertura do país para o exterior. Foi nesse contexto que foram estabelecidos acordos migratórios com o Brasil, tendo chegado no dia 18 de junho de 1908, em Santos-SP, o primeiro navio de imigrantes (São Paulo, 2018).
Em 1912, a Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha (KKKK) se estabeleceu em Registro, onde loteou terras para a colonização. Entre 1917 e 1918, a empresa levou mais de 200 famílias para a região, marcando o início da colônia japonesa. Ao chegarem a uma terra de mata virgem e sem infraestruturas básicas, como moradia, luz e água, os pioneiros precisaram adaptar seus conhecimentos. O resultado foi uma arquitetura singular, que uniu saberes e técnicas japonesas com a realidade e os materiais disponíveis no Brasil.
No entanto, o que parecia ser apenas um trabalho de análise estrutural se revelou uma imersão na memória e na vida de quem habitava e zelava por esses lugares. Descobrimos que a verdadeira força do patrimônio não estava nas paredes, mas nas pessoas que os mantiveram vivos por tantos anos: Dona Lourdes (Residência Gozo Okiyama), Sra. Suzu (Residência Suzu Okiyama), Sr. Toshio Shimizu (Fábrica e residência Shimizu), a própria comunidade da Igreja Anglicana e pessoas com um novo olhar de zelo pela história, como Antonio dos Anjos e Sra. Luciana (Residência Hokugawa). O Bunkyo de Registro teve um papel importante na articulação da comunidade e participação no projeto. Foram suas histórias, seu amor e cuidado que mantiveram a vida dessas materialidades.
Plantou-se, já naquela época, a semente da Zeladoria do Patrimônio Cultural, que é o zelo, amor e afeição pelo patrimônio cultural. Em 2013, entregamos a documentação ao IPHAN e realizamos a estabilização das construções. Entre 2015 e 2017, desenvolvemos uma série de ações de controle de pragas nas edificações já citadas, com o acréscimo da Residência Fukasawa ao processo.
Um novo ciclo começou em 2024, quando o Estúdio Sarasá, em cooperação com o Bunkyo de Registro, elaborou e submeteu o projeto “Conservação e zeladoria da Igreja Episcopal Anglicana Japonesa de Registro: preservação das materialidades e do memorável da região do Vale do Ribeira” ao Edital fomento CULTSP – PNAB nº 12/2024, de execução de intervenções em imóveis protegidos. O projeto foi aprovado em 2025, dando início a essa nova e importante etapa.
O projeto extrapola as intervenções físicas, sendo o foco a comunidade e a reconexão. Essa jornada culminou em encontros marcantes. No dia 13 de setembro, Toninho Sarasá apresentou, no Bunkyo de Registro, a trajetória do Estúdio Sarasá com a comunidade, percorrendo o período de 2012 a 2025, contemplando desde a chegada do Estúdio Sarasá até as mudanças de visão relativas às construções como extensões de seus moradores e da comunidade. Fez-se trocas de saberes e fazeres.
Como forma para tornar concreto o entendimento das ações realizadas, mostrou-se os processos usados pelo Estúdio para estabilizar as construções para as leituras e as ações práticas de zelo.
No fim, a apresentação deixou claro que a verdadeira transformação não reside apenas na técnica, mas nos processos humanizados que colocam as pessoas e a comunidade como os grandes detentores do saber e agentes de mudança.
No dia 20 de setembro, a Dra. Akemi Hijioka, que possui um doutorado voltado à arquitetura das casas dos imigrantes japoneses no Vale do Ribeira, realizou uma oficina onde foram explorados conhecimentos, saberes e técnicas.
Inicialmente, apresentou o macrocosmos das relações que formaram a história da colônia, passando dos acordos migratórios até as primeiras formas de ocupação do território.
Chegando ao microcosmos das construções, viu-se como extensão do corpo e vida dos imigrantes, perpassando por algumas técnicas. Vivenciou-se as especificidades das estruturas dos telhados feitas com uma técnica japonesa que minimiza os impactos dos terremotos até a fibra de arroz, que, junto do barro, compõem as taipas de fechamento das construções.
As experiências não têm sido apenas teóricas, pois a participação se dá no âmbito da escuta, das narrativas e das práticas. Mais do que um projeto de conservação, é uma celebração de laços, onde a história do patrimônio se estreita com a vida das pessoas que o preservam. A beleza desse trabalho está em perceber que, quando cuidamos de um patrimônio, estamos, na verdade, zelando pelas histórias e pelos afetos que o sustentam.
Depoimento: o Valor Humano na Preservação Histórica
Para compreender a grandiosidade e a sutileza deste projeto, mergulhei nos diversos documentos produzidos desde 2012: relatórios, entrevistas, fotos e vídeos. Como uma arquiteta que integra a equipe de Zeladoria do Patrimônio Cultural do Estúdio Sarasá e que trabalha com o patrimônio, tenho a convicção de que as edificações são mais do que os materiais que as compõem; elas são a materialização das histórias de vida das pessoas que as habitavam e/ou habitam e da comunidade que a cerca. No entanto, a cada trabalho em que participo e encontro tamanha profundidade, me transformo.
Poder estar no local, visitar as construções, conhecer as pessoas e participar das oficinas amplifica essa experiência. Ao falar sobre as técnicas, a Prof. Dra. Akemi Hijioka não se limitava aos métodos, mas nos transportava para o cotidiano daquela época: “como as pessoas faziam, em que horário, quando se colhia a madeira, a terra e/ou a palha de arroz…”. Cada detalhe foi criando uma cena viva na minha mente, me ajudando a entender a vida, os desafios e a união da comunidade.
Processos como esse confirmam e me mostram a importância de integrar a comunidade na conservação, restauro, manutenção e zeladoria de seus patrimônios. É a comprovação de que o verdadeiro valor de uma construção reside na sua capacidade de ser uma extensão de seus moradores e/ou da sociedade, das técnicas e das relações construídas a partir dela.
Texto escrito por:
Ana Luiza Oliveira de Campos
Referência:
Estúdio Sarasá. Relatório de levantamentos, diagnósticos e serviços emergenciais na arquitetura rural de registro: Volume 1, 2, 3, 4, 5 e 6. 2013
Estúdio Sarasá. Relatório residência Hokugawa. 2025
Estúdio Sarasá. Relatório de Serviços de Conservação da Arquitetura Rural Japonesa. 2017
GONÇALVES, Rogério Bessa. O sincretismo de culturas sob a ótica da arquitetura vernácula do imigrante japonês na cidade de Registro, São Paulo . Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 11–46, 2008.
DOI: 10.1590/S0101-47142008000100002.
Disponível em: https://revistas.usp.br/anaismp/article/view/5486.. Acesso em: 23 set. 2025
HIJIOKA, Akemi. Minka: casa dos imigrantes japoneses no vale do ribeira. 2016. 251 f. Tese (Doutorado) – Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2016.
Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/102/102131/tde-12012018-101224/pt-br.php. Acesso em: 23 set. 2025.
Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha. CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, 2017.
Disponível em: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/kaigai-kogyo-kabushiki-kaisha-2/
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SÃO PAULO. EMBAIXADA DO JAPÃO. História da Imigração. 2018.
Disponível em: https://www.br.emb-japan.go.jp/110anos/index.html. Acesso em: 19 set. 2025.
SÃO PAULO. Flávia Brito Nascimento. Iphan. Bens culturais da imigração japonesa no Vale do ribeira. São Paulo: Governo Federal.
Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/wp-content/uploads/2017/03/Bens_imigracao_japonesa_vale_do_ribeira.pdf. Acesso em: 23 set. 2025.