No dia 14 de Agosto, o Instituto Sarasá e o Estúdio Sarasá participaram da primeira Semana do Patrimônio de Santos, cujo tema norteador foi Caminhos para a sustentabilidade do patrimônio edificado. A iniciativa foi realizada pela Associação Comercial de Santos (ACS) em parceria com a SEPASA, Seção de Patrimônio Histórico da Secretaria do Meio Ambiente de Santos (SEMAM) e a Prefeitura de Santos.
A atividade proposta envolveu o desenvolvimento de uma cartografia afetiva criada por cada participante a partir de uma caminhada pelas ruas do centro de Santos, uma ação repleta de intenção e reflexões. A cartografia afetiva é uma metodologia que une a criação de mapas (cartografia) a partir de vivências, memórias e emoções, e não apenas com base em coordenadas geográficas ou dados objetivos.
Compreendeu-se, conforme o arquiteto Francesco Careri (2013), o caminhar como um ato reflexivo:
Foi caminhando que o homem começou a construir a paisagem natural que o circundava. Foi caminhando que, no último século, se formaram algumas categorias com as quais interpretar as paisagens urbanas que nos circundam (Careri, 2013, p. 11).
Selecionamos previamente alguns edifícios emblemáticos da cidade, aqueles já tombados e reconhecidos “oficialmente” como patrimônio cultural, tais como a Associação Comercial, o Panteão dos Andradas, a Igreja do Carmo, a Casa do Trem Bélico, a Alfândega, o Museu do Café e o Museu Pelé. A intenção inicial era oferecer aos participantes um ponto de partida com referências consagradas do patrimônio local. No entanto, a atividade revelou apropriações e percepções muito mais amplas da cidade.
A cartografia afetiva envolve os registros pessoais, elementos visuais e simbólicos para além daquilo que é edificado e tangível, e ancora-se igualmente na participação comunitária, naquilo que impulsiona a cidade. O objetivo, com este exercício, é de revelar como o território é vivido e sentido por cada indivíduo, e, no grupo, identificar elementos comuns de afetividade para se pensar a preservação do patrimônio cultural e de relações.
Os participantes tiveram a liberdade de criar sua própria forma de registrar, seja pela escrita ou pelo desenho. No que se refere à legenda de cores pré-estabelecida, os afetos foram marcados em verde, os desafetos, em azul, e o efeito “uau”, ou seja, aquilo que emociona, foram indicados em vermelho. Com a sobreposição dos mapas produzida pela equipe do Instituto e Estúdio Sarasá, sob o espírito de partilhar os registros, percebeu-se que tanto os afetos quanto as experiências que mais emocionaram os participantes estiveram ligados à conexão com a paisagem e à natureza, como as árvores, com a Praça da República, que não estava destacada em nossa seleção prévia; o som dos pássaros e o acesso ao mar também foram pontuados, bem como elementos simbólicos que despertam memórias da infância, os espaços de convívio social, e o contato com aspectos históricos e culturais.
Dentre os elementos edificados e culturais que selecionamos previamente, os que mais se destacaram foram a Casa do Trem Bélico (fortemente associada ao bonde), o Outeiro de Santa Catarina, a Alfândega da Receita Federal e a Associação Comercial de Santos.
Por outro lado, os pontos de desafeto estiveram associados a fatores que dificultam a fruição da cidade, tais como calçadas rachadas, acessos bloqueados, excesso de fiação e poluição sonora. Também foram citados como impeditivos à contemplação da paisagem o trânsito, a falta de acessibilidade na cidade, a descaracterização do espaço urbano e construções antigas em situação de arruinamento, registrados nos mapas dos participantes.
A relação entre a cidade moderna e o centro histórico também foi apontada como um dos principais elementos de desafeto. Muitos participantes destacaram a presença de edifícios espelhados, de linguagem arquitetônica contemporânea, e de construções excessivamente altas em contraste com as edificações antigas e de menor escala vertical. Esse choque visual, percebido como um fator que descaracteriza o conjunto histórico e até mesmo a identidade urbana da região, revela um olhar crítico dos participantes sobre esses tempos da cidade que, muitas vezes, estão em dissonância.
Alguns lugares ainda foram representados como símbolos ambíguos: enquanto para alguns despertavam afetos, para outros eram motivo de desafeto, ponto relevante para o diálogo acerca da preservação.
Essas observações evidenciam uma população atenta à cidade e às práticas de conservação de seu patrimônio e, sobretudo, ao impacto dessas ações, não apenas na paisagem urbana, mas também em seus bens culturais.
O arruinamento de alguns edifícios históricos, sinalizados nos mapeamentos, também foi apontado como fator de desafeto, revelando tanto a negligência quanto intervenções consideradas inadequadas afetam negativamente a relação afetiva da comunidade com seu patrimônio.
Observar essa semelhança e sobreposição entre os marcos, evidencia a subjetividade inerente à vivência do espaço urbano e a pluralidade inerente.
Ao destacarem lugares que extrapolaram a seleção previamente proposta, essas pessoas evidenciaram vínculos afetivos diversos e pessoais, para além dos marcos históricos institucionalmente reconhecidos.
Ao demarcarem seus próprios afetos e desafetos, revelam percepções individuais do coletivo, do urbano, e traçam seus próprios percursos, tornando visíveis experiências únicas de apropriação da cidade.
Assim, o mapa afetivo não apenas identifica pontos de interesse, de emoção e incômodo, mas também traduz a cidade vivida, sentida e interpretada, ressaltando o papel da memória, da identidade e do olhar da comunidade na construção do seu patrimônio cultural, um dos objetivos da Zeladoria do Patrimônio Cultural.
O texto acima é uma produção da equipe de Zeladoria do Patrimônio Cultural do Estúdio Sarasá e do Instituto Sarasá.
Referência:
CARERI, Francesco. Walkscapes. O caminhar como prática estética. 1ª Edição, Barcelona: Gustavo Gili, 2013.